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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

UMA QUARTA-FEIRA DE CINZAS

Fonte: Solimar Oliveira lima*
02/12/09


Em novembro, mês da Consciência Negra, foi destruído mais um Quilombo. O poder da elite se manifestou com a força estatal na definição da politica pública para a cultura carnavalesca em Teresina. Senhor e capitão do mato decretaram o fim do carnaval com escolas de samba e blocos na av. Marechal Castelo Branco. As forças dominantes e seus históricos prepostos sabem que sem a apresentação concentrada de escolas e blocos não existe o carnaval das raizes do nosso povo.


A alegação oficial para as mudanças revela ausência de sensibilidade e compromisso político com espaços potenciais de afirmação popular. Não bastam investimentos em diversificação das linguagens artisticas. É dever preservar identidade cultural, sobretudo quando ainda precisamos consolidar uma que respeite a presença dos diferentes segmentos sociais. A leitura de cultura única é valida quando se vê o povo como somatório de muitos sem negar partes. Na cultura de todos, existem diferenças e é isto que enche nossos olhos e corações diante do colorido das manifestações culturais. Esta nossa cultura é que nos dá unidade.


Ser uno com dimensão coletiva é aprendizado básico no carnaval. No desfile concentrado de escolas e blocos, o resultado depende de todos. Por isto, a competição é de partilha e solidariedade. Na avenida, com a mesma paixão pelo samba, tudo de um pode ser do outro. Nós, sambistas, somos apoios técnicos, intérpretes, passistas, instrumentos, carnavalescos e cores do samba. A emoção, nas alegrias e tristezas, faz desaparecer divergências. Os interesses particulares existem apenas para a alegria do povo.


O carnaval concentrado de Teresina não pode ser apenas para o interesse de mercado. Ainda que o povo esteja nele, não se faz como tradição do povo. A dispersão de escolas e blocos nos bairros invizibiliza socialmente e fragiliza politicamente as agremiações carnavalescas. Retiram a força politica das representações populares, colocam as agremiações na periferia do centro de decisões da cultura. Uma cultura que exclui, não promove o bem comum. Qualquer ação estatal que contribua para a fragmentação popular e para o aumento da distância cultural do povo conspira contra o interesse público.


O que a elite antipovo não sabe é que, para nós, sambistas, toda quarta-feira de Cinzas é começo de carnaval. Quando todos pensam que chegamos ao fim, já estamos acumulando forças para fazermos do ano seguinte o mais belo de todos. Este é o nosso ritmo, nossa cadência e harmonia de vida. Gostamos e fazemos samba e carnaval por amor e resistência. Queremos e defendemos estar juntos e junto à sociedade. A concentração é do povo e o povo é a fonte do samba. Viva o povo e salve o samba!


* Prof. Dr. do Departamento de Economia, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e pesquisador do Núcleo IFARADÁ, da Universidade Federal do Piauí. Em 02 de dezembro é comemorado o Dia Nacional do Samba.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Diretor de "Do Começo ao Fim" diz provocar com caso de incesto gay

Fonte: Folha Online
27/11/2009 - 10h38

SILAS MARTÍ
da Folha de S.Paulo, enviado especial ao Rio

No punho direito, Aluízio Abranches tatuou a palavra "trust" (confiança, em inglês). Deixou aparecer várias vezes as letras pretas numa casa da Gávea, no Rio, onde conversou com a reportagem.

Divulgação
Os atores João Gabriel e Rafael Cardoso, que vivem irmãos apaixonados, em cena de "Do Começo ao Fim"
Os atores João Gabriel e Rafael Cardoso, que vivem irmãos apaixonados no cinema

"Quando vi o olhinho dele molhado, decidi que era ele mesmo", lembra o diretor, confiante, falando de como escolheu o ator João Gabriel para ser um dos irmãos que se apaixonam --e vivem um romance-- em "Do Começo ao Fim".

Sabendo que "a homossexualidade existe, mas não incomoda", Abranches deu um passo além. Pôs em cena dois irmãos, um loiro e um moreno, que têm um caso de incesto gay. "Queria provocar", admite o diretor.

Mesmo com a "autoestima lá embaixo", Abranches também parece ter confiança total no filme que estreia hoje.
Depois que cenas com os atores João Gabriel, o moreno do "olhinho molhado", e Rafael Cardoso, dos cachinhos dourados, vazaram --e bombaram-- na internet no início do ano, todo tipo de boato já cercou esse filme. Quando foi cortado da lista do Festival do Rio, em setembro, houve suspeitas de que diretor e equipe não conseguiam chegar a um acordo em relação à montagem final.

"Quando vi a primeira cena, tomei um choque na coluna", conta Gabriel. "Mas depois vi que não era tão conflituoso."

Esse receio, que pende entre o escândalo e a discrição, acaba sufocando o filme. Na encenação do tabu, Abranches, o diretor do tórrido "Um Copo de Cólera", cria um mundo de estética quase publicitária, achata conflitos e esconde o drama sob diálogos arrastados, trilha sonora plácida e músculos lisos. "Ficou delicado mesmo", diz Rafael Cardoso, que vive o irmão mais novo. "Está tudo muito implícito porque a gente estava muito à mostra ali."

No que parece ser uma fusão entre comercial de margarina e, depois, de creme de barbear, não há drama. Dois irmãos se apaixonam, e a sociedade aceita, a mãe aceita, o pai aceita. "Eles têm sofrimentos, momentos de solidão, de conflito, mas numas camadas mais veladas", diz Abranches. "Não acho que seja um filme cor-de-rosa."

Se não pink, "otimista", nas palavras do diretor e dos atores. "É uma história de amor entre dois jovens", relativiza Cardoso. "Queria fazer um filme otimista, sobre amor, um amor possível", conclui Abranches.

Mas, em cena, esse afeto aparece truncado. Se nos trailers que vazaram no YouTube, Gabriel e Cardoso se esbaldam em carícias, o filme baixa o tom e reveste de frieza o contato entre os dois, um romance que não passa do morno ao quente.

Heterossexuais na vida real, Gabriel e Cardoso ensaiaram para construir o amor na ficção, mas não convencem. "Não tem nenhum pudor eu com ele, ele comigo", diz Cardoso. "A gente é movido por libido", diz Gabriel. Mas o "trust" parece ficar mesmo só no punho do diretor.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Introdução à bicha fina

Fonte: Por João Silvério Trevisan

Sair do armário equivale a descobrir um novo continente, tanto dentro de nós quanto na sociedade. Outro dia duas lésbicas me contaram como, no começo do relacionamento que mantêm há anos, não tinham com quem conversar quando brigavam, desprovidas que estavam de parâmetros sobre mulheres vivendo conjugalmente. Como essa, existem milhares de situações na vida homossexual que parecem inéditas, graças à invisibilidade e ao estigma. Aí se inclui a atitude que devemos manter em público, para além do estereótipo mais visível da bicha desmunhecada. Tal busca de identidade pública provoca experimentações discutíveis. Tanto que, em certos ambientes gueis, às vezes me pergunto se não estou num outro planeta.

Isso me aconteceu há pouco, no supermercado do shopping Frei Caneca, lotado de homossexuais. Havia um clima irrespirável, de tanta arrogância e vaidade das bichas que desfilavam por ali. E não foi a primeira vez que senti isso no Guei Caneca. É assustador que um espaço conquistado pelos homossexuais tenha se tornado mera passarela para um estilo de vida fútil e exibicionista. No supermercado, imperava o carão. Ninguém se olhava, pois com certeza todos estavam ali para serem olhados. (Ora, se ninguém olha pra ninguém, qual a graça de desfilar?) Tratava-se sobretudo de exibir músculos bem trabalhados, mal cobertos por camisetas da moda. Parecia um séqüito de aristocratas exalando um ar enfadado de quem mal suporta repartir espaço com a desprezível plebe.

Empurrando seus carrinhos de supermercado como tronos ambulantes, olhavam os produtos quase com desprezo. No esforço de não desmunhecar, seus gestos resultavam rígidos, controlados e calculados. O cuidado com a discrição era tal que se confundia com mau humor. Conversava-se à base de monossílabos, sobretudo os casais, que pareciam ostentar sua condição conjugal com o subtexto: "Vejam como casei bem". Aliás, os únicos a conversar com naturalidade ali eram alguns jovens casais héteros, que agiam sem disfarces e totalmente à vontade. Na fila do caixa, prestei atenção numa bicha que, apesar da falta de charme e da voz de taquara rachada, parecia ter incorporado a princesa Diana. Demorei até perceber que ela estava se sentindo a Diana graças aos seus óculos azuis de grife, nos quais certamente gastara metade do salário. Lembrei dos 10 anos em que morei nos Jardins, um dos bairros mais esnobes de São Paulo. Pois bem, no Shopping Frei Caneca eu parecia estar diante de uma versão guei das madames dos Jardins, desfilando suas roupas da moda, exceto que no lugar do nariz empinado por sucessivas plásticas ali desfilavam músculos trabalhados a peso de ouro. Então minha pergunta inicial poderia se inverter: não estariam tais homossexuais vivendo em outro planeta?

Essa espécie de praga social, que se espraia entre a comunidade guei, inscreve-se na velha "síndrome da bicha fina". Anos atrás, bicha fina banhava-se em perfume francês, coisa que caiu de moda, para não dar bandeira. Hoje, bicha fina é "discreta", musculosa, usa roupas de grife e faz carão. O carão, que virou estilo de vida para muitos gueis, é um cacoete que funciona como gesto de auto-afirmação: devo ser olhado porque sou especial, enquanto os outros são desprezíveis demais para merecer meu olhar. Nesse clima, é inevitável que os ambientes gueis se caracterizem por uma verdadeira guerra de egos acirrados. Em conseqüência, eclode um problema recorrente em muitos homossexuais: a mitomania, ou tendência mórbida de mentir. Por se julgarem com defeito de fabricação, muitos homossexuais tentam se "consertar" através do engrandecimento exasperado: inventam mentiras para se valorizar.

O mais notável mitômano que conheci na minha juventude foi um rapaz que alardeava ser descendente da casa real portuguesa e ter sido amante do rei da Bélgica, entre outras pérolas. Na vida real, ele nunca saíra do Brasil, e seu pai era comerciante num bairro de baixa classe média de São Paulo. Nessa época, bichas mitômanas eram casos esparsos, parte do folclore guei e motivo de gozação. Hoje, parece que a mitomania tornou-se uma qualidade e se generalizou. Nos chats gueis da net, todo mundo vende imagem de lindo, sarado, viril e tem pelo menos 20 cm de pau. Um verdadeiro olimpo de deuses – que não sobrevive ao primeiro encontro. Ora, toda essa mania de grandeza significa um esforço de afirmação que resulta de uma auto-estima periclitante. Tentando barrar um impulso de rejeição, a bicha fina mascara-se como personagem grandioso, e busca ser outra pessoa através de mentiras megalomaníacas. Com isso, foge da sua (dura) realidade.

Acredito que o meio homossexual vive hoje uma espécie de engenharia identitária, no esforço de construir publicamente aquilo que antes vivia oculto. Nessa ótica, o Shopping Gay Caneca tornou-se um grande laboratório identitário, onde gueis testam uma imagem pública que parte de premissas equivocadas. Do homossexual invisível e sem rosto de antes, passamos à construção de uma espécie de super-homossexual – quem sabe o Super 24 – de músculos exuberantes e corpo depilado, cujo ideal máximo é a discrição, para atingir um padrão de aceitação social. A moda da depilação masculina indica uma forma narcisista de ressaltar a musculatura, mas também uma obsessão com a higiene.

O componente de vaidade auto-afirmativa passa por uma variante do tipo: "sou bicha, porém limpinha". Levada às últimas conseqüências, essa compulsão higienizante talvez sonhe em adicionar à merda um cheiro mais atraente, conforme o dia e a hora: hoje vou cagar odor Kenzo, mês que vem cagarei Chanel 5 (em homenagem à Marilyn Monroe), etc. Afinal, não é impunemente que homossexuais passam pela barreira do preconceito.

No interior de São Paulo, um dos apelidos mais cruéis que conheço é o de "besouro", para homem que gosta de comer viado. É que besouro curte merda. A associação entre homossexualidade e sodomia leva imediatamente à fantasia da sujeira (nos documentos antigos, um dos sinônimos de viadagem era justamente "sujidade"). Portanto, o fenômeno da bicha fina não caiu do céu. Resulta do estigma e da parca experiência que nós homossexuais temos para superá-lo através de uma identidade social. Repito: para nós tudo é muito novo, no sentido de compreender nosso espaço no mundo, então estamos ensaiando várias maneiras de "ser" socialmente.

O engraçado, para não dizer irônico, é que no caso da bicha fina, sai-se da invisibilidade diretamente para o exibicionismo. Da total ausência social, chegamos à anomalia coletiva do carão. O resultado é um desfile de egos trôpegos, à procura de si mesmos, como no Shopping Gay Caneca. Se alguma coisa está desfilando ali é a falta de aceitação de si mesmo. A bicha fina tenta afirmar fora de si alguma coisa frágil dentro de si. Em resumo: não gosta do que é. Trata-se de uma velha conhecida, causa de todo conflito de aceitação: a homofobia internalizada. Se historicamente homossexuais acostumaram-se a viver escondidos, está mais do que na hora de mostrar a cara. Sem medo. E sem carão, por favor. Nossa identidade social nasce da verdade pessoal que construímos interiormente. E não de máscaras trocadas conforme a conveniência, pra parecer bacana.